1. “Mar Português”, extraído de Mensagem e as referências à História de Portugal nele presentes
O poeta volta o leitor para o tempo das Grandes Navegações: o apogeu da história lusitana, e a amplidão marítima os doze poemas, estão bem resumidos na epígrafe “Possessio maris”, afinal foi o que os lusitanos fizeram, tomaram posse do mar. Consequentemente, esta segunda parte de Mensagem aborda a expansão ultramarina. Já no primeiro poema refere-se ao Infante D. Henrique (sagrado por Deus) e através daí dá forma ao seu nacionalismo místico, afinal Deus é a mola propulsora de todas as ações humanas: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. O que nos esclarece o sonho de D. Henrique, o navegador foi instigado por Deus a fim de concretizar o empreendimento marítimo. Entretanto, D. Henrique não estava sozinho nesta empreitada, e Pessoa nos mostra isso nos poemas subsequentes através de personagens importantes para a história das grandes navegações bem como a era dos descobrimentos, como Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, é através dessas personagens históricas que Fernando Pessoa nos faz rememorar a necessidade da pátria para alargar e unir-se ao mundo. Portanto, justifica-se o poema-prece em que o poeta pede a Deus que a chama do Ideal mais uma vez seja acesa.
caráter intertextual do poema
Há diversos fatores intertextuais em Mar Português, um deles é a figura do Monstrengo que retoma o episódio do Gigante Adamastor, na epopéia Os Lusíadas (canto V, estrofes 39-60). Adamastor, monstro gigantesco, simboliza o Cabo das Tormentas, mais tarde Cabo da Boa Esperança, o fato é que o Gigante aparece e aterroriza os lusitanos através de sua fala “- Ó gente ousada mais que quantas...” (estrofe 41). Em Mar Português as falas do Gigante se repetem nas do Monstrengo “Quem é que ousou entrar...” entre outras que podemos destacar ao longo do poema. Assim o Monstrengo também representa o medo a ser vencido pelos lusitanos nesse memorável empreendimento. Na imaginação dos navegantes ainda sobreviviam pensamentos medievais, os quais faziam com que acreditassem que a partir de certo ponto, no mar, viviam terríveis monstros que destruíam as embarcações que ousavam invadir seu território. Podemos entender esse fato, como o medo do desconhecido, que evidencia as fraquezas humanas que são superadas pela vontade de se fazer grandes descobertas.
Outro fator intertextual que pode ser destacado está no IX poema Ascensão de Vasco da Gama, afinal, Vasco recebeu do Rei D. Manuel I o comando de uma expedição destinada a encontrar um novo caminho marítimo para a Índia, sua celebre viagem é motivo do poema épico “Os Lusíadas” Fernando Pessoa, destaca Vasco da Gama como um Argonauta, ou seja, um herói. Poderíamos dizer que alem da citação da Personagem histórica, Pessoa faz, ainda, um paralelo entre a viagem de Vasco da Gama e dos argonautas, afinal ambos foram heróis que enfrentaram perigos para alcançar difíceis objetivos, o primeiro em busca da Índia e o segundo em busca do precioso talismã.
O poema Mar Português, evidencia-nos mais um fator intertextual, trata-se do Episódio do Velho do Restelo (Canto V 94-104). O discurso do Velho do Restelo é uma reflexão filosófica sobre a empresa das Índias e que ele condena não por ser contrário ao progresso, mas por considerar esta viagem comandada pela cobiça e que o custo de tal operação será muito mais elevado do que as suas vantagens, devido às consequências nefastas que terá na sociedade portuguesa. Mar Português, retoma a temática do sacrifício que de certa forma, fora anunciado nas Quinas e no Episódio acima descrito.
Confronto entre “Mar Português” com a cena da partida rumo à Índia em Os Lusíadas em que se faz ouvir a fala do “Velho do Restelo”. A Partir dessa comparação, comente as diferenças entre a epopéia renascentista e o poema épico moderno que é Mensagem.
O Velho do Restelo figura a consciência crítica tanto dos que ficam como dos que partem para o enfrentamento dos perigos nos medos que mar sem fim provoca. Trata-se da própria voz do consenso geral que fala através da palavra daquele que é definido como portador de um “saber só de experiências feito” e que do “experto peito” retira a suas palavras quase proféticas. O Velho do Restelo apresenta o receio do conquistador diante do desconhecido, adverte sobre os perigos, e denuncia a realidade que o sonho de dominação não permitia revelar-se. Desse modo, pelas suas palavras, conseguimos explicitar o “ter” e o “ser” das viagens, articulando estas duas informações, pelo contraste positivo-negativo da viagem. Como eixo destes contrastes, encontra-se a noção de “equívoco” que o Velho do Restelo atribui à ideologia que mascara a realidade das navegações. Nomear, chamar de “Fama” a “vã (ter e ser) cobiça” é, pois, por parte da ideologia dominante, um ato de camuflagem do real. Estas contradições denunciadas pelo Velho conferem a esta parte da epopéia uma tensão até então ainda não ocorrente no relato da obra Os lusíadas. Não é assim que se porta o sujeito da enunciação da Mensagem, no poema “Mar Português”, faz eco ao discurso do Velho do Restelo. Nele o aspecto positivo-negativo ocorrentes no ciclo de descobrimentos marítimos de Portugal se dissolve um no outro, visto que a primeira das duas estrofes que o compõem encerra a constatação de que a posse do mar implicou para a Nação um pesado tributo histórico. A este fato, ligamos a informação que aparece no texto, reforçada pela utilização quatro vezes do pronome indefinido “quanto”. Assim, sal implica lágrimas e vice-versa, e “choraram”, “em vão rezaram” e “ficaram por casar” foram condições historicamente impostas para o domínio português sobre os mares, condições estas atualizadas no poema pelas expressões “por te” e “para que”. Igualmente ao primeiro, o segundo segmento deste se inicia com um questionamento, voltado genericamente para a existência humana e suas implicações espirituais. E justamente em face desta dimensão transcendente é que agora se atribui ao sofrimento que foi o caminho para a plenitude, processo que de resto é, na concepção cristã do poema, a trajetória do Homem como ser universal. E assim, a dimensão da alma que “não é pequena” e a dor são condições para que tudo valha à pena. E o mar somente espelha o céu porque também implica perigo e abismo. Estas relações têm neste novo plano de sentido do poema somente a notação positiva, contrária à do primeiro. Isto se dá justamente porque, na ótica ideológica do narrador da Mensagem, a particularidade do sacrifício nacional português toma sentido na medida em que encontra sustentação do ser humano. O questionamento das viagens marítimas tem, pois, aqui, uma função oposta à que se abre em Os lusíadas, uma vez que ele se faz precisamente para avalizar ideologia dominante. Sendo assim, não falta ao poema Mar Português referências à própria predestinação divina, à marca de ancestralidade que confere unção aos feitos marítimos, porque, se “Deus ao mar perigo e o abismo deu,” foi porque justamente “nele é que espelhou o céu”. Posição adversa pertence a de Camões em Os lusíadas quando, na estrofe 98, ainda pela fala do Velho do Restelo, condena a ancestralidade na figura mítica de Adão. A seguir, na estrofe 102, dentro de idêntica profissão de fé cristã, condena a própria navegação e mesmo o canto que a ela se venha depois dedicar.